“Sodade do cordão” de Dimitri Ismailovitch, um retrato modernista do Brasil sob a pena de um artista ucraniano
rico machado
Muito provavelmente quando se fala em artista que nasceu na Ucrânia e teve relevo no Brasil lembramos de Clarice Lispector. A escritora chegou ao país por volta dos dois anos de idade, em 1922, com sua família, que havia fugido da Guerra Civil Russa e da perseguição à comunidade judaica. Este texto, porém, se dedica a Dimitri Ismailovitch, natural de Kiev, que chegaria no Brasil cinco anos mais tarde, tendo passado anteriormente outros sete na Turquia. Na década de 1930 (e depois) Ismailovitch se tornaria um dos artistas mais requisitados na sociedade carioca.
Até sua morte, em 1976, Dimitri Ismailovitch foi um dos pintores que retratou o crème de la crème da elite artística e intelectual do Brasil, além de socialites, políticos e empresários. Rafael Cardoso, em seu livro Modernismo em preto e branco (São Paulo: Companhia das Letras, 2022), narra em detalhes, no capítulo final, a trajetória desse pintor. Dentre suas obras, um quadro de 1945 intitulado Ceia em homenagem a Aleijadinho, chama atenção pelo estilo das figuras humanas que são traduções intersemióticas das esculturas do artista mineiro. Contudo, o que pretendemos tratar neste texto, de forma muito breve, é do quadro Sodade do cordão, de 1940.
Sodade do cordão
De largada, o título da obra Sodade do cordão já é instigante e a explicação do professor e pesquisador Rafael Cardoso ilumina o caso.
Sodade é uma corruptela de saudade, claro, e o segundo termo remete a um cordão carnavalesco de verdade. Pouco tempo antes da pintura da tela, o compositor e maestro Heitor Villa-Lobos organizou uma agremiação que se apresentou no Carnaval de 1940 também batizada de Sodade do cordão.
Rafael Cardoso, 2022, p. 270
Na tela, que é um tríptico, há apenas duas pessoas brancas, o próprio Ismailovitch e Villa-Lobos, que foi um dos grandes nomes da Semana de Arte Moderna. Todos os demais são representações, antes icônicas que arquetípicas, com fenótipos bastante diferentes entre si, inclusive com um personagem com um solidéo islâmico. Há pessoas negras na composição, mas com diferentes características, bem como indígenas com rostos e adereços particularizados. No livro de Rafael Cardoso há um estudo minucioso (da página 274 a 280) dos personagens da obra, inclusive com remissões a outros retratos em grafite que parecem ter servido de estudo, ou referência, para a obra.
Nem mítica, nem desprezível: a Semana de 1922
Mais vulgar que mitificar a Semana de 22 como inauguração do modernismo brasileiro, é o discurso de que ela não teve importância e que foi um evento da elite paulistana. Em que pese ser verdadeiro o fato de que o evento foi patrocinado e frequentado pela elite de São Paulo, suas consequências para a cultura no Brasil foram importantes. As primeiras e ácidas críticas vieram dos próprios participantes, como Oswald de Andrade e Mário de Andrade, por exemplo. De começo pode-se falar do Movimento Antropofágico, uma resposta crítica ao evento do Teatro Municipal em fevereiro de 1922. É interessante, por outro lado, que figuras como Tarsila do Amaral, que sequer participou da Semana, são alçadas a ícones do evento. Vale sublinhar que apesar do imaginário em torno dela, que a alçou ao papel de “musa” (espectral), a pintora nunca esteve presente fisicamente.
Enigma brasileiro
A questão sobre “o que é ser brasileiro” está posta há mais de um século, quando a colônia deu lugar à república. O Modernismo brasileiro, que ultrapassa em extensão e tempo a Semana de Arte Moderna de 1922, evento complexo e incontornável para a história da cultura no Brasil, debruçou-se sobre essa pergunta e ofereceu muitas respostas. Mas para tratar de cada uma delas é preciso parcimônia e rigor, algo impossível de realizar nesse breve texto. Diversos autores e pesquisadores têm publicado a respeito, uma rápida pesquisa mostra a fortuna crítica.
Noves fora o ideal de mestiçagem que marcou parte da produção teórica dos anos 1930/1940 e do desejo do Estado Novo varguista em definir o que seria uma identidade nacional, o quadro de Dimitri Ismailovitch – ressalte-se, de 1940 – traz à tona a irredutível possibilidade de se pensar uma identidade nacional que não seja aquela plural e diversa como são os povos deste país.
Nesse sentido, não deixa de ser curioso – e sintomático – que um ucraniano tenha percebido tão claramente nossa vocação pluralista. Encerro com as palavra de Rafael Cardoso.
Com seu olhar enigmático e sua habilidade em transformar retratos em ícones, Ismailovitch demonstrou que entendeu a dimensão fugidia da coletividade brasílica. Ele é o imigrante que se apresentou como mais brasileiro que os brasileiros, o estrangeiro e amigo que nos mostra a face que queremos ver.
Rafael Cardoso, 2022, p. 282
Referência
CARDOSO, Rafael. Modernismo em preto e branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
Como citar este texto
MACHADO, Rico. “Sodade do cordão” de Dimitri Ismailovitch, um retrato modernista do Brasil sob a pena de um artista ucraniano. Disponível em: https://antropofagias.com.br/2022/03/19/sodade-do-cordao-de-dimitri-ismailovitch-um-retrato-modernista-do-brasil-sob-a-pena-de-um-artista-ucraniano/ Acesso em: 19 mar. 2022.