Viver sob a temperatura do fim do mundo: a condição humana no Antropoceno
rico machado*
O mais recente relatório parcial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – IPCC (na sigla em inglês), divulgado na primeira quinzena de agosto de 2021, não deixa dúvidas: vivemos sob um novo regime climático. O desafio urgente e inadiável é limitar o aquecimento global a 1,5ºC até o final do século. Não se trata mais de pensar o colapso climático como “crise”, o que pressuporia alguma possibilidade de solução, mas de minimizar os efeitos do aquecimento global para garantir a possibilidade da vida humana na terra. Em um planeta radicalmente transformado pela ação do ser humano sob sua superfície, repensar, justamente, o estatuto e o significado do ser humano tornou-se imperativo.
Solução local não resolve o problema global
Três grandes potências econômicas mundiais planejam pactos de redução de carbono. O European Green Deal pretende diminuir a emissão de gases do efeito estufa pela metade até 2030 e zerar a emissão de poluentes até 2050. Joe Biden, nos Estados Unidos, prometeu investir na casa dos trilhões de dólares para renovar radicalmente a matriz energética de seu país, em um conjunto de 14 projetos que ele chamou de “Green New Deal”, em alusão ao projeto de crescimento econômico pós-crash da bolsa empreendido por Roosevelt, na década de 1930. A China ocupa um papel paradoxal neste contexto, pois ao mesmo tempo que aplicou mais de 86 bilhões de dólares em painéis solares nos últimos anos, tornando-se o país que mais investiu em fontes renováveis de energia, também voltou a destinar recursos para termelétricas, uma das fontes energéticas mais poluidoras que existem.
Esses planos e esforços são importantes, mas insuficientes se nada for feito em relação à proteção das áreas verdes do planeta, incluindo o Pantanal e a Amazônia. Esta última a cada dia que passa diminui sua capacidade de absorção de CO2, tornando-se uma emissora de gases do efeito estufa, sobretudo em função das queimadas e do desmatamento. Em entrevista ao IHU, o professor e pesquisador José Marengo alertou que “No caso da Amazônia, chegando-se a um aquecimento de 4 a 4,5 graus ou a um desmatamento de uma área maior do que 40%, ou ainda ao aumento da concentração de CO2 acima de 400 (partes por milhão), o clima posterior nos levaria a um ponto de não retorno e, com isso, o clima passaria a ser diferente”.
Este cenário se torna ainda mais complexo quando consideramos que no caso brasileiro os esforços do governo federal são no sentido contrário ao que sugere o painel do clima. “No Brasil, os efeitos da gestão desastrosa da Amazônia se somam ao aumento de temperatura de 10ºC devido às mudanças climáticas. Com as políticas descabidas do governo federal, diminuindo a vigilância, não aplicando multas e desprezando a ciência sobre o assunto, ensejam e até estimulam mais queimadas”, analisa o professor e pesquisador Marcos Buckeridge, em entrevista ao IHU.
Financiadores da desigualdade
Um evento recente se transformou em um marco de “nossa” civilização, embora nenhum pouco civilizatório. Trata-se da viagem de Jeff Bezos durante dez minutos ao espaço, no dia 20 de julho de 2021. Apesar dos preços das passagens não terem sido divulgados, um leilão de venda de um dos assentos na cápsula da Blue Origin arrecadou nada menos que 28 milhões de dólares. O comprador, no entanto, declinou de participar da primeira viagem ao espaço no foguete do dono da Amazon.
Em um vídeo de uma coletiva de imprensa após a viagem espacial, Bezos – encarnando literalmente a malograda piada de que os empregados devem sempre se esforçar um pouco mais para tornar o patrão mais rico – agradeceu os funcionários da Amazon pela viagem.
Goste-se ou não do passeio espacial de Bezos, ele inaugura uma ruptura importante na condição humana, que deixou de ser, ao menos no imaginário dos bilionários, uma questão universal e passa a ser a possibilidade de viver em outro local habitável para a nossa espécie, a custo de todas as demais, claro. Mesmo entre os ricos que não planejam deixar este planeta, a questão diante do colapso climático parece ser somente salvar a própria pele, apostando na automatização de serviços e na indiferença em relaçao às condições de trabalho e precarização dos trabalhadores inseridos no capitalismo de plataforma.
Bezos evidentemente não é o único bilionário que enriquece às custas do meio ambiente, embora sua figura e sua fortuna estimada em 207 bilhões de dólares sejam simbólicas. Seu investimento na utopia extraterrestre contrasta com o dano ambiental que as embalagens de sua empresa produzem no planeta terra, o que seria suficiente para “embrulhar” toda a superfície onde habitamos centenas de vezes.
A aposta dos países ricos, seja nos “acordos verdes” estatais ou no sonho espacial dos bilionários, em uma saída “privada” à crise climática, converte-se numa versão atualizada do histórico processo de colonização. Novamente quem deverá pagar a conta mais cara do aquecimento global são, como sempre, os mais pobres das nações pobres. “Os países de renda mais baixa serão os mais afetados pelos efeitos do aquecimento global. Nunca é demais relembrar que as alterações nos padrões de chuva podem causar períodos de elevada pluviosidade ou secas severas e prolongadas. Chuvas intensas em áreas com habitações precárias podem resultar em perdas materiais e de vidas seja por enchentes, seja por escorregamento de vertentes”, adverte o professor e pesquisador Wagner Ribeiro, em entrevista ao IHU.
Usinas termelétricas, na contramão de um planeta enfermo
Enquanto os países do Norte global apostam em renovação das matrizes energéticas, o Rio Grande do Sul vem discutindo nos últimos anos a autorização da instalação de uma mina de carvão mineral às margens do Rio Jacuí, colocando em risco o abastecimento de água potável de Porto Alegre, capital do Estado, e de parte da região metropolitana.
Dentro deste contexto, em junho de 2019 foi inaugurada em Candiota, no interior do Rio Grande do Sul, uma usina termelétrica, onde foram gastos mais de R$ 2 bilhões em sua construção. É justamente esse tipo de produção energética, a partir de combustível fóssil, que contribui de maneira decisiva para o aquecimento global. O investimento político do governo do Rio Grande do Sul em uma usina movida a carvão, como “única” saída para o desenvolvimento econômico do estado, revela, na verdade, o compromisso com o atraso e radical descompasso com o presente e o futuro.
“O grande exemplo é justamente este, essa mina de carvão a céu aberto que se pretende fazer em terreno de banhados a 900 metros do rio Jacuí e é apresentada como grande fator de independência econômica do Rio Grande do Sul. Isso é uma farsa, pois é justamente o contrário, só vai trazer problemas brutais, inclusive, em toda a área metropolitana. Afinal, corre-se o risco de transformar o rio Guaíba, que abastece a área metropolitana, num fétido lago de águas podres”, afirma Flavio Tavares em entrevista ao IHU.
Projetos como este não deixam de ser ilustrativos do abismo que separa, como diria Edgar Morin, os eixos da dupla hélice que nunca se encontram, a saber: da dimensão técnica e da dimensão ética. Não deixa de ser atemorizante o fato de que sejamos viventes e copartícipes da infosfera global, sabedores das consequências à vida no planeta de projetos como este, mas que, ao mesmo tempo, tem grande apoio social, apesar de colocarem nossa própria vida e de inúmeras outras espécies em risco.
Pensar a condição humana sob o fim do mundo implica, como sugere uma série de autores – dentre eles Bruno Latour, Peter Sloterdijk, Yuk Hui –, repensá-la para além do paradigma da modernidade, que há quase um século mostra seu crescente declínio. O desafio passa a ser pensar a condição humana e seus desdobramentos em termos cosmológicos, não a partir da fratura entre o que é da ordem da cultura e da natureza, senão como dimensões simbióticas incontornáveis. Em suma, se viver no antropoceno tornou-se inescapável, que sejamos capazes de habitar o planeta para além dos modos de vida que nos levaram à temperatura do fim do mundo.
* Reportagem publicada orginalmente no IHU.