Onde Aterrar? No ocaso da globalização, a “questão da terra” se tornou planetária
Onde Aterrar? Como se orientar politicamente no antrooceno – Bruno Latour (Bazar do Tempo, 2020)
rico machado
Quando Tom Jobim compôs Samba do avião e na última estrofe escreveu “Aperte o cinto, vamos chegar / Água brilhando, olha a pista chegando / E vamos nós aterrar”, suponho eu, jamais imaginou que uma canção em homenagem à cidade do Rio de Janeiro se tornaria um imperativo global. Pelo bem, pelo mal, passamos a viver em um planeta cuja sucessão de páginas que se seguiram ao proclamado “fim da história” de Fukuyama nos levou ao ocaso da globalização e tornou a questão da terra um desafio planetário. Há muito mundo sob os pés de poucos e muitos pés à espera de um mundo a aterrar.
Latour em sua obra Onde aterrar? Como se orientar politicamente no antropoceno (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020) lança seu olhar sobre um planeta cujas crenças mais sólidas na Modernidade dissolveram-se como perdigotos da covid-19 no ar da pandemia global. A crise da Modernidade que testemunhamos é, ao fim e ao cabo, a constatação de que sempre foi e continua sendo impossível levá-la a termo. Não há mundo possível para dar conta do projeto moderno, assim como a fratura kantiana entre natureza e cultura, ou para falar com seus próprios termos com o céu de estrelas sobre nós e a lei moral dentro de nós, mostrou-se se não falsa, uma armadilha perigosa.
Os primeiros a se darem conta da impossibilidade do projeto moderno, que está na base da globalização, foram as elites obscurantistas, que ao perceberem que não havia planeta para todos, trataram e tratam de investir pesado no marketing pós-político. Portanto o problema a ser enfrentado, diferentemente do que acreditam muitos jornalistas, não é a pós-verdade, mas a política da pós-política. Latour define a pós-política como aquela que “literalmente [é] sem objeto, na medida em que ela rejeita o mundo que reivindica habitar” (2020, p. 49-50). Essa “resposta”, pois dado seu projeto e organização supõe ser mais que uma “reação”, é efeito da constatação de três ameaças que se originam da derrocada do projeto da globalização, muito embora ele continue a todo vapor, patrocinado pelo negacionismo privado e estatal. Como veremos, essa encruzilhada não deve ser ultrapassada, sob nenhum aspecto, com projetos nacionalistas, no mais das vezes tiranos. As três ameaças a que nos referimos são descritas por Latour (2020, p. 19) como:
- Migrações;
- Explosão de desigualdades;
- Novo Regime Climático.
Melhor dizendo, trata-se, antes de três crises, de uma única crise, sustentada por essa tríade necropolítica materializada nos sucessivos processos de desregulação de qualquer tipo de controle social contra a concentração de riqueza e, em paralelo, a retirada dos mecanismos sociais mínimos de bem-estar social. Para usar um velho e batido bordão dos ricos, o fato é que os bilionários obscurantistas se deram conta que “não há almoço grátis” (o deles no caso) e “se convenceram tão bem de que não haveria vida futura para todos que decidiram se livrar o mais rápido possível de todos os fardos de solidariedade” (LATOUR, 2020, p. 28).
Caetano que cantava, no começo dos anos 1990, “alguma coisa está fora da ordem / fora da nova ordem mundial”, foi outro, que, mesmo sem querer, acabou “prevendo” por linhas tortas que o Brasil, por sua sistêmica incompetência em enfrentar a desigualdade, acabaria por se tornar o reflexo antecipado do que hoje constatamos perplexos: a única coisa realmente “fora da ordem” do mundo concreto, era, justamente, “a nova ordem mundial”. Por isso, também, tornou-necessário reterritorializar a terra, mas com os “Terrestres” dentro.
Isso passa por redefinir o que compreendemos como geo-política, para incluir o território e seus habitantes – todos eles – dentro do conceito. Não se trata mais de pensar o “geo” (LATOUR, 2020, p. 53) como o teatro “externo” onde decorrem as ações, mas o barro que enlameia os pés dos viventes. Tal intuição nos convida a um breve desvio a outros autores. Em um livro publicado originalmente em 1991, intitulado O que é a filosofia? (São Paulo: Editora 34, 2010), Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem pensarmos em uma geofilosofia. Dentre os muitos debates que a obra engendra, no capítulo Geofilosofia os autores sustentam que “Pensar se faz antes na relação entre o território e a terra” (DELEUZE, GUATTARI, 2010, p. 103). A proposta é levar em conta como fazer com que os conhecimentos façam os movimentos de “desterritorialização (do território à terra) e a reterritorialização (da terra ao território)” (Ibidem). A questão que Latour levanta me parece justamente essa de devolver a ciência à terra, de devolver a filosofia à terra, de devolver a história à terra, de devolver, quiçá, a teologia à terra.
Dipesh Chakrabarty, em um artigo chamado O clima da história: quatro teses, chama atenção para pontos cruciais do que poderíamos chamar de geo-história, pensando a historiografia para além da continuidade da experiência humana, uma história para um mundo em que a sexta extinção em massa, a dos sapiens, se concretizou. Não vou aprofundar o conteúdo de suas teses, mas permitam-me apresentá-las, o que por si só, já oferece boas provocações para pensarmos o que seria uma história para além dos humanos.
• Tese 1: As explicações antropogênicas da mudança climática acarretam o fim da velha distinção humanista entre história natural e história humana;
• Tese 2: O conceito de Antropoceno, a nova época geológica na qual humanos existem como força geológica, modifica severamente as histórias humanistas da modernidade/globalização;
• Tese 3: A hipótese geológica do Antropoceno exige que coloquemos em diálogo as histórias globais do capital e a história da espécie humana;
• Tese 4: A rasura dos limites entre a história da espécie e a história do capital questiona os limites da compreensão histórica.
Gostaria apenas de pontuar que, seguindo essa trilha interpretativa, talvez pudéssemos pensar a Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, nos termos de uma geoteologia, mas sob a qual eu não me sinto à vontade nem tenho competência para avançar na especulação.
Para falar com outras palavras, em uma síntese radical, a questão geo-social, em termos latourianos, é, parece-me, a questão da terra. Por isso afirmávamos no começo que a globalização da desigualdade tem como mecanismo de arranque, mas também de chegada, a questão da terra. Latour sustenta que uma “luta de classes depende de uma geo-logia” (2020, p. 78), atualizando a análise marxista, mas intensificando-a, obrigando “a retomar a questão social, deixando a nova geopolítica (…) ainda mais intensa.” (Ibidem).
Portanto, pensar a geopolítica exige-nos fazer associações, alianças, também como propôs Isabelle Stangers, entre outros livros, em No tempo das catástrofes (2015). Latour apresenta sua sugestão de arranjo nos seguintes termos: “Para recorrer a um clichê, não seria o caso de ter de escolher entre o salário dos operários e o destino dos passarinhos, mas entre dois tipos de mundo em que há, em ambos, salários de operários e passarinhos, só que combinados de formas distintas cada um deles” (2020, p. 71).
Mauro Almeida, professor de antropologia da Unicamp, oferece uma alternativa convergente à proposta de Latour, mas a descreve como um acordo pragmático entre ontologias incomensuráveis. Em um artigo publicado recentemente, intitulado Anarquismo Ontológico e Verdade no Antropoceno, Mauro propõe que a solução para o problema da incompatibilidade de mundos dentro do mundo, que tem origem no desejo universalista da globalização que subsume os saberes locais como “variações” dos globais, “consiste em separar metafísicas e encontros pragmáticos. Pois não se trata de conciliar ou traduzir ciências em conhecimentos locais reduzindo os últimos ao denominador comum do realismo científico. Em vez disso, trata-se de reconhecer que diferentes teorias-cosmologias, ainda que incomensuráveis e irredutíveis entre si, podem dar conta das mesmas experiências – dos mesmos matters of fact – em contextos particulares” (2021, p. 12). Isso está diretamente ligado ao que Latour chama de “ciência-processo” em que “os pesquisadores se veem confrontados com conjuntos de saberes concorrentes que eles não têm o poder de desqualificar a priori” (2020, p. 97).
Para finalizar, gostaria apenas de pontuar que só será possível saber se orientar no Antropoceno à medida que aprendermos a descrever o planeta tal como a catástrofe climática o desenha. Aterrar, portanto, inclui “antes de mais nada aceitar definir os terrenos da vida como aquilo de que um terrestre depende para sobreviver, perguntando-se quais são os outros terrestres que se encontram sob a mesma dependência.” (LATOUR, 2020, p. 114). Além de se colocar diante destas questões, existir como povo, como terranos, exige que narremos os episódios de nossa vida em sua riqueza e multiplicidade, sem monoteísmos toscos, quer sejam laicos/filosóficos ou religiosos, sob pena de esquecermos nossa condição de terranos. “Existir como povo e ser capaz de descrever seus territórios de vida consiste numa única e mesma coisa” (LATOUR, 2020, p. 117). É a condição de terrano, não de humanos, que coloca nossos olhos sobre a terra, condição esta que nos permite ouvir a grama crescer e sem a qual entregamos o mundo que vivemos à narrativa universalizante, globalizante e macabra do neoliberalismo contemporâneo. Por mais difícil que seja imaginar o fim do capitalismo, é preciso regar o jardim da imaginação política.
Referências
ALMEIDA, Mauro. Anarquismo Ontológico e Verdade no Antropoceno. Ilha Revista de Antropologia, [S.L.], v. 23, n. 1, p. 10-29, 24 fev. 2021. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). http://dx.doi.org/10.5007/2175-8034.2021.e78405.
CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Revista Sopro. nº 91. Florinópolis: 2013.
DELEUZE, Gilles Deleuze. GUATTARI Félix. O que é a filosofia?. São Paulo: Editora 34, 2010.
LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no antropoceno (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020)
STENGERS, Isabelle. No Tempo das Catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, Coleção EXIT, 2015