Comunicação,  Entrevistas

A disputa pelo futuro pós-pandêmico consiste em desenhar novos caminhos, concretos e tangíveis

Rico Machado
Imagens: Amazônia Real e Mateus Alves/Instituto Sócio Ambiental-ISA
Entrevista publicada originalmente na Entrevista do Dia do IHU

Muito se fala em medicamentos para tratar a covid-19, a necessidade de se chegar a uma vacina e de rever hábitos sociais, mas o que faremos diante da possibilidade de mais de 3.200 tipos de coronavírus existentes na Amazônia chegarem às populações urbanas? Sim, esse é o número de um estudo feito em 2017 que estudou mais de 20 mil espécies de morcegos, roedores e musaranhos nas Américas Latina e Central, bem como Ásia e África. “Outras informações são interessantes nesse levantamento, uma delas é que a diversidade de coronavírus, por si só, não é um indicador de risco, pois apenas uma parte dos coronavírus afetam as pessoas”, pontua a doutora Nurit Bensusan, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Entretanto, cabe um alerta para o qual as evidências científicas indicam uma relação entre o desmatamento e o acometimento de doenças virais para os seres humanos. “A degradação dos ambientes precipita novas interações entre os organismos o que pode ser um gatilho para emergência de novas doenças. Os casos da malária e da leishmaniose são emblemáticos”, destaca. “Para cada 1% de floresta derrubada anualmente na Amazônia, há um aumento de 23% na incidência de casos de malária e de 8% a 9% na de casos de leishmaniose”, complementa.

Não obstante as questões ambientais em disputa, a colonização do pensamento pelo capitalismo se coloca como um entrave à imaginação de novos futuros. “Ao longo do tempo, nossas relações com a natureza foram se transformando, certamente uma parte significativa desse processo tem relação com a expansão do capitalismo, tanto geográfica quanto para dentro de nossas cabeças. A lógica desse sistema colonizou nosso imaginário e talhou nossas relações com a natureza e sem sequer nos darmos conta, elas foram se convertendo numa saga de predação”, frisa. “Se conseguirmos cultivar o pensamento pensante e não o pensamento pensado, já será um avanço. Estamos emparedados num presente sem horizontes”, assinala.

Mateus Alves/ISA

Nurit Rachel Bensusan possui graduação em biologia pela Universidade de Brasília – UnB, pós-graduação em história, sociologia e filosofia da ciência, na Universidade Hebraica de Jerusalém, graduação em engenharia florestal, mestrado em ecologia e doutorado em educação pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente, divide seu tempo entre o trabalho com políticas públicas e divulgação científica na área de conservação da biodiversidade e a reflexão e pesquisa sobre temas relativos à conservação das paisagens, ao acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais e aos impactos e dilemas das novas biotecnologias. Além disso, escreve livros e produz jogos com temas biológicos para crianças.

Leia a entrevista na íntegra.


a} – De que forma os vírus se reproduzem, se adaptam e qual o papel dos hospedeiros nesse processo?

Nurit Bensusan – Todo vírus que circula na natureza precisa de um outro ser vivo para se reproduzir. É usando o maquinário da célula de outro organismo que o vírus se multiplica e consequentemente se espalha. Os vírus também se transformam ao longo do tempo, e assim se torna possível que as novas versões do vírus se instalem em novos hospedeiros onde suas versões anteriores não conseguiam. Os hospedeiros podem ser infectados ou não, mas o trânsito do vírus é facilitado.

a} – Como estão intimamente ligadas a redução da biodiversidade e o “sucesso” de propagação do vírus da covid-19?

Nurit Bensusan – É a degradação dos ambientes naturais que empurra animais para fora de seus habitats originais, fazendo com que animais que não se encontram habitualmente passem a conviver. Muitos deles passam a frequentar áreas próximas às cidades – e mesmo áreas urbanas – e consequentemente entram em contato com animais domésticos e com humanos. Essa situação facilita que algumas das mutações dos vírus acabem permitindo que eles se alojem em novos hospedeiros. No caso do novo coronavírus, sabe-se que a história começou no morcego e que passou por outro animal, possivelmente o pangolim. Esse primeiro encontro já não deveria ter acontecido. O morcego deveria estar em seu ambiente natural e não em áreas urbanas e periurbanas, o pangolim não deveria estar numa gaiola em um mercado em Wuhan, vítima do tráfico de animais. O segundo encontro, possivelmente entre o pangolim e nós, tampouco deveria acontecer. O tráfico de animais acontece, em geral, por falta de opção, as pessoas dedicadas a essa atividade não tem escolha para assegurar sua sobrevivência.

a} – Como os vírus, que são seres bastante velozes em sua multiplicação e adaptação em comparação às espécies animais, mais complexas, se beneficiam desta redução da biodiversidade para chegarem mais rápidos aos seres humanos?

Nurit Bensusan – A reprodução dos vírus é muito rápida, se trata na verdade apenas uma acelerada multiplicação de uma cadeia de RNA , como no caso dos coronavírus, ou de DNA , o que dá a oportunidade de que mutações aconteçam rapidamente e se tornem prevalentes – ou não – dependendo de seu sucesso em se adaptar ao ambiente, sempre em transformação. Assim se criamos condições, destruindo os ambientes naturais e fomentando a mudança do clima, para que os vírus transitem mais facilmente entre novos hospedeiros, eles têm mais probabilidade de alcançar a humanidade também. Vale lembrar que nosso organismo abriga milhões de microorganismos, inclusive vírus, que são muito úteis na manutenção da nossa saúde. Ou seja, os vírus não são vilões, nós é que criamos as condições que catapultaram o coronavírus para dentro dos nossos organismos.

a} – De onde vem o dado de que há 3,2 mil coronavírus diferentes somente no Brasil e como as mudanças climáticas, desmatamento e agressão aos biomas, aumentam a possibilidade de espalharmos novas pandemias?

Nurit Bensusan – O dado sobre os morcegos se deriva de um levantamento (Anthony, S. J. et al. Virus Evol. 3, vex012, 2017), entre outros, que mapeou a distribuição de coronavírus no mundo, analisando cerca de 12.300 morcegos, 3.400 roedores e musaranhos e 3.500 macacos em 20 países da África, Ásia, América do Sul e Central. Outras informações são interessantes nesse levantamento, uma delas é que a diversidade de coronavírus, por si só, não é um indicador de risco, pois apenas uma parte dos coronavírus afetam as pessoas. Tanto que na época da epidemia de SARS, os pesquisadores de coronavírus se surpreenderam em saber que a doença era causada por um vírus desse tipo. Uma forma de saber qual é o potencial desse vírus de chegar aos humanos é seu histórico de transbordamento, ou seja, de mudar de espécie de hospedeiro. Curiosamente, nesse levantamento os pesquisadores observaram que na África o transbordamento entre diferentes espécies de morcegos era quatro vezes maior do que entre os vírus no México, Brasil, Bolívia e Peru. Isso pode se dever às diferenças genéticas dos coronavírus, mas também às formas de interação entre as espécies nos diferentes ambientes (Sobre o potencial dos morcegos como hospedeiros de coronavírus mortais, conforme estudo publicado na Nature.

Os vírus se transformam rapidamente e isso possibilita que sofram mutações que permitem que se instalem em novos hospedeiros, onde suas versões anteriores não conseguiam. Com o desmatamento, a degradação ambiental e as mudanças climáticas, muitos organismos são compelidos a mudar de lugar, a migrarem. Essa situação coloca em contato animais que jamais se encontrariam naturalmente. Esse encontro pode facilitar o transbordamento, ou seja, o vírus pode encontrar novos hospedeiros e passar, eventualmente, a infectá-los.

A degradação dos ambientes precipita novas interações entre os organismos o que pode ser um gatilho para emergência de novas doenças. Os casos da malária e da leishmaniose são emblemáticos. É possível fazer uma relação entre o número de hectares de florestas destruídos e o aumento de casos dessas doenças. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea mostrou que para cada 1% de floresta derrubada anualmente na Amazônia, há um aumento de 23% na incidência de casos de malária e de 8% a 9% na de casos de leishmaniose.

Mudanças climáticas podem ampliar também a distribuição de vetores de doenças, como a dengue, fazendo com que o mosquito esteja presente em outras latitudes e altitudes. Os ciclos de vida desses vetores também podem se acelerar. Vale dizer que há inúmeros aspectos que podem ser analisados na interface entre os ambientes naturais e as mudanças climáticas, quando o assunto é ameaças à saúde humana. Isso porque a complexidade das interações na natureza é gigantesca e ainda conhecemos muito pouco disso.

a} – Como nossa economia foi, progressivamente, convertendo-se em um sistema predatório? Como este fluxo destruidor está ligado ao aparecimento de pandemias?

Nurit Bensusan – Ao longo do tempo, nossas relações com a natureza foram se transformando, certamente uma parte significativa desse processo tem relação com a expansão do capitalismo, tanto geográfica quanto para dentro de nossas cabeças. A lógica desse sistema colonizou nosso imaginário e talhou nossas relações com a natureza e sem sequer nos darmos conta, elas foram se convertendo numa saga de predação.

Exemplos não faltam: desde as “fazendas” de produção de proteína animal, com milhares de animais confinados, apenas para o abate, mantidos em condições precárias e cruéis, até as florestas, savanas e campos destruídos. Sem deixar de mencionar as toneladas de lixo que jogamos no mar e de poluentes que lançamos em todas as partes. Tudo fruto de um sistema que prioriza o consumo, acima de tudo. Todo esse cenário se configura em um gatilho para novas pandemias. A Organização Mundial da Saúde – OMS já considera esse mundo, onde há cada vez mais surtos de doenças mortais como o ‘novo normal’ e reconhece que a destruição ambiental é um importante componente desse novo mundo.

a} – Em que sentido, a pandemia que estamos vivendo é resultado, também, de nossas ações cotidianas?

Nurit Bensusan – Acima de tudo, são as escolhas que cada indivíduo faz que somadas compõem o mundo. Se todos os que consomem o planeta de forma predatória desistissem, se ninguém admitisse que pessoas morressem de fome, nem que os ambientes naturais fossem destruídos inutilmente, o mundo mudaria. Mas aparentemente, as coisas não funcionam assim. O mundo só se transformará com um imenso esforço e essa pandemia talvez não seja o gatilho suficiente para essa mudança. Ela deveria vir das ações cotidiana de cada um de nós. De uma conscientização sobre o cuidado: do cuidado com o planeta até o cuidado de si, não porém um cuidado de si narcísico, egoísta, e sim um cuidado com o núcleo ético que habita cada um de nós.

a} – De que maneira o isolamento social e todas as novas restrições impostas pela covid-19 podem nos ajudar a compreender as profundas interrelações entre nossas ações e o meio ambiente?

Nurit Bensusan – Entre várias outras possíveis, acredito que de duas formas. A primeira é essa que relaciona a degradação da natureza com a emergência da covid-19. Trata-se, talvez, de reconstruir a nossa percepção de que somos parte da natureza e não algo a parte. Trata-se de apostar na natureza como fonte de inspiração, seja para a tecnologia, seja para a arte, e não apenas como fonte de recursos a serem explorados. Deveria ser uma nova compreensão da vida.

A segunda é compreender que a desaceleração econômica, os investimentos que são feitos, os caminhos que o mundo vinha seguindo, são escolhas que outros fazem por nós. Não se trata de uma inexorabilidade e sim de uma imposição.

a} – Como pensar o impossível? De que forma aquilo que foi compreendido durante muito tempo como utopia ambientalista se torna um imperativo pós-pandêmico?

Nurit Bensusan – Pensar o impossível é difícil. Não temos prática. O pior que nem sequer temos prática em pensar sem corrimão, na expressão de Hannah Arendt. Se conseguirmos cultivar o pensamento pensante e não o pensamento pensado, já será um avanço. Estamos emparedados num presente sem horizontes. Talvez só o resgate da nossa capacidade de sonhar nos permitirá pensar um outro mundo possível no futuro pós pandêmico. Mas talvez seja muito tarde…

a} – Há mundo por vir? Se sim, que mundo?

Nurit Bensusan – O presente é uma máquina de fazer futuros. E o que fazemos, pensamos e sonhamos agora é que moldará nosso futuro. Porém, o presente é também um reflexo do passado, onde ele foi talhado como futuro. Se não disputarmos o futuro pós-pandêmico seriamente, desenhando novos caminhos, concretos e tangíveis, mundos onde as pessoas desejem viver, o mundo que está por vir será uma versão piorada do mesmo velho mundo que nos trouxe aqui.

a} – Deseja acrescentar algo?

Nurit Bensusan – Sim, tudo isso pode parecer muito pessimista. Para mim, trata-se de uma análise realista. Mas acho que isso não deve nos imobilizar. Gosto do mote: pessimismo na análise, otimismo na ação. ■

Professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia - Ufob. Realizou doutorado em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, na Linha de Pesquisa Cultura e Significação. Jornalista de formação, é mestre em Comunicação pela Unisinos, onde também realizou a especialização em Filosofia.

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