Não existe mais dia seguinte, de Vitor Necchi
rico machado
“Meu corpo encolhe até me igualar à estatura das larvas brancas que se confundem com a massa rósea dos frutos tombados. E numa perfeita simbiose com os bichinhos, mergulho na polpa de cheiro forte e percorro uma cartografia do passado”
Vitor Necchi, Não existe mais dia seguinte, p. 30
Eu poderia começar esse texto falando do rigor do autor no uso de recursos retóricos e redacionais, como a repetição. Poderia começar falando da sensibilidade sobre temas sensíveis como a morte, que rondam o livro em todas suas frentes, ou das aulas de jornalismo, passando pelos obtusos obituários que negam a sexualidade não “normativa”, até chegar no limite da própria existência com a partida do vô e da vó. Eu poderia, talvez, começar falando das histórias que ouvi primeiro da boca do Vitor, quando compartilhávamos o mate pela manhã (isso era bem mais significativo que o trabalho), sobre quando, com torpor, soube da morte do Noll. Mas não, prefiro começar falando – como se eu já não tivesse começado – do dia, três anos atrás, quando, depois de encarar uma longa fila, no antigo endereço da Livraria Taverna, em Porto Alegre, recebi um abraço e uma querida dedicatória de Não existe mais dia seguinte (Porto Alegre: Editora Taverna, 2018).
Aqueles eram tempos duros – muito embora se tornariam um tanto mais nos anos que se seguiram. O lançamento do livro do Vitor foi num sábado ensolarado e ameno. Em seguida à sessão de autógrafos eu iria assistir O rei da vela, do Teatro Oficina, com a presença do Zé Celso e tudo, em apresentações que ocorreram somente naquele final de semana em Porto Alegre. Tornou-se um dia duplamente memorável, o encontro com Oswald de Andrade e Zé Celso, mas também o encontro com um Vitor Necchi que ainda não conhecia, mas que estava ali exposto e nu sobre as 190 páginas de Não existe mais dia seguinte.
O livro nos toca por diferentes razões, nenhuma delas está ligada a uma erudição “purificada” (como se isso não fosse falso, como se isso não fosse brega). Nada no texto de Vitor Necchi é revestido por qualquer tipo de pureza. É por isso que habitam uma mesma página Gustav Mahler, Tomas Mahn e os personagens Félix e Niko do beijo gay na novela Amor à vida, de Walcyr Carrasco.
Mais tarde, quando descobri os olhos oblíquos de Necchi diante da avó nua, soube desde a primeira linha que o olhar não guardava pudor – não eram puritanos –, eram olhos de respeito e consternação, por saber, contra a própria vontade, que aquele corpo estava preso a um fio de existência e que carregá-la no colo era a forma de mantê-lo intacto. Aquele fio era talvez o único, o último, que havia sobrado da meada da vida. O gesto delicado ao esticar a pele da bochecha envelhecida do avô, para que a lâmina o barbeasse com cuidado – desde que isso não fosse feito em uma Sexta-feira Santa – tinha o mesmo zelo com que outrora era o avô quem se dedicava ao brilho dos sapatos do adolescente Necchi que no dia seguinte passaria pela inspeção do sargento no Colégio Militar.
Não existe mais dia seguinte é um livro, no fundo, sobre como é possível haver dia seguinte. É assim que o leio. É assim que o livro me tocou três anos após o dia de seu lançamento, quando finalmente comecei a lê-lo. É assim quando nos vemos diante do abismo que nos circunda, como nos ensinou Wisława Szymborska. É assim, e foi assim, quando por diferentes razões choramos pelos dias que haviam passado e pelos dias vindouros. De alegria e tristeza, porque no fundo são afetos que coexistem. Era um choro com algum pudor muito mal disfarçado, mas assim o era porque as lágrimas rompiam a rotina quase mecânica do trabalho e isso assustava, embora depois do choque era sempre o tempo do abraço e sempre nos abraçamos. Há sempre dia seguinte, para o bem e para o mal. Há sempre dia seguinte, para recordar e para viver. Há sempre dia seguinte até que a letra não repouse mais sobre o papel e finalmente chegue a hora em que Não existe mais dia seguinte.