Quando dobrei a esquina, encontrei o meu passado | #009
| A vida é uma causa perdida é uma série de textos que têm como tema as coisas inúteis da vida, que não por acaso tendem a ser, justamente, suas belezas |
rico machado
Distraído que estava, não podia suspeitar do susto que levaria. Ao dobrar a esquina encontrei o meu passado. Ele tinha os olhos cansados, barba grande, um andar trôpego. Desta vez cheirava bem, vestia roupas limpas e estava sóbrio. Seu nome: Gelson. Sim, o Gelson é meu amigo desde quando era muito criança, muitas vezes me defendeu dos meninos maiores e mais fortes que eu, que gostavam de mostrar sua valentia contra os fracotes magricelos (dentre eles, eu) na saída da escola.
Gelson morava junto com a avó, a tia que tinha uma doença mental que lhe causava um déficit cognitivo em relação sua idade biológica, a mãe e dois irmãos – um mais velho, outro mais novo. Sua avó era dona do terreiro onde íamos nos benzer e assim o fizemos até o dia que ela abandonou a religião afro-brasileira e passou a fazer parte da Igreja Universal.
Desde muito jovem, Gelson cometia pequenos furtos. Roubava um dinheiro de uma bolsa aqui, outro dinheirinho de uma carteira acolá, mas nunca se soube (e ele não tem o perfil) de que tivesse agido de modo violento. Seu irmão mais velho era mais faca na bota, e assim era conhecido e temido. O mais novo não era tão temido, nem conhecido, mas numa “dessas” acabou preso e ficou alguns anos no regime fechado.
Ao me ver, meu velho amigo me pediu um trocado. Disse-me que ia tocar uma “gira” em um terreiro em um bairro próximo daqui, mas que não tinha nada de grana. Foi direto e sincero: “Preciso de uma grana!”. Catei o que tinha no bolso, algo como cinco reais, e dei-lhe. Ficamos conversando. Perguntei como estava, se tinha se vacinado, respondeu “Eu moro na rua, mas não sou trouxa, estou esperto. Em setembro tomo a segunda dose”. Essa, pelo menos, foi a melhor notícia que ouvi no dia de hoje.
Ele faz tratamento em um posto de saúde do SUS da minha cidade, em que eles tratam e acompanham pacientes com HIV. Gelson é, além de dependente químico, soropositivo. Como precisará voltar no dia 26 de setembro para seu acompanhamento, pretende no mesmo dia fazer a segunda dose da vacina contra o coronavírus.
Dia desses, há não muito tempo, ele passou aqui em casa, apresentou sua companheira, uma mulher-trans bastante jovem, e me pediu algo para comer. Hoje estava sozinho. Comentou de sua filha e de seu filho, ambos com mais de 20 anos de idade. Estão bem, disse-me. Também confessou que quando está muito desesperado se socorre com eles.
Falou sobre seus irmãos. Parece, mas nem ele sabe ao certo, que o mais velho foi executado com dezenas de tiros na rodoviária de uma cidade litorânea de Santa Catarina, depois de tentar fugir com a grana de um “serviço” do qual era um dos partícipes. Gelson, contudo, é criativo. Às vezes a realidade ganha contornos fantasiosos e, apesar de ter contado essa história, continua cético sobre a morte do próprio irmão, afinal, como ele mesmo afirmou “eu não vi o corpo, uma foto não me basta”.
Gelson é, ainda hoje, meu amigo. Sinto carinho por ele. Me comove vê-lo na rua, mas é lá que se sente bem. São palavras dele, não minhas. É um espírito livre. Um ser humano livre, como poucos. Ser livre, contudo, é algo difícil, requer renúncia, implica medo e uma vida que poucos estão dispostos a viver. Ser livre é a coisa mais difícil que existe.
Ele falou com certa alegria sobre os filhos, apesar de vê-los pouco, pois, como afirmou, é tudo o que tem. Disse-me com pesar: “Morreu minha vó, minha mãe, agora meu irmão (o mais velho). Eu não tenho ninguém. Não pode morrer todo mundo, senão fico sozinho”. Gelson é também o meu passado que me arrasta para o futuro com toda a bruteza de viver em mundo e país tão desigual. Se tivesse que escolher do lado de quem caminhar no futuro, escolheria o que sempre escolhi, andar com meus amigos. O Gelson é um deles. O Gelson é meu amigo.