Antropofagia
A Antropofagia é um complexo ritual ameríndio de guerra, que envolve vingança e, como derradeira etapa do processo, a ingestão da carne do inimigo virtuoso. A Antropofagia não é canibalismo, porque é uma prática ritualística. O canibalismo, por sua vez, é a antropofagia por fome. Os primeiros relatos no Brasil datam do século XVI.
Nas artes, especialmente na pintura e na literatura, o Movimento Antropofágico, nestes termos, surge a partir do encontro/jantar de Tarsila do Amaral, Raul Bopp (1977) e Oswald de Andrade, quando o garçom veio com o prato de rãs em direção à mesa e eles brincaram parafraseando um trecho da obra da Hans Staden, cativo sobrevivente dos Tupinambá, initulada Duas viavens ao Brasil (2019): “Lá vem nossa comida pulando”.
Pouco tempo mais tarde Tarsila pintaria a obra Abaporu – palavra de origem tupi-guarani [aba, homem, pora, gente e ú, comer] que significa “homem que come gente” – , uma das mais célebres pinturas do Modernismo Brasileiro. Em 1928 Oswald de Andrade publicaria o Manifesto Antropófago, texto inaugural de um movimento que celebra os povos nativos do Brasil como nossa mais relavante expressão teórica e estética.
O que é a Antropofagia
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. O traço cultural mais marcante de nossa existência pindorâmica foi brilhantemente definido por Oswald de Anfrade no quinto aforismo de seu Manifesto Antropófago. A Antropofagia nunca se tratou do canibalismo por fome, tampouco de qualquer metáfora em relação a engolir e regurgitar, mas sim de uma sofisticada dimensão dialógica e ritualística, capaz de produzir uma Semiofagia. Ao longo de mais de cinco séculos de interrelação entre os invasores europeus e as populações autóctones das Américas, tornou-se lugar comum pensar os nossos povos como selvagens no sentido mais pejorativo possível. Isso revela um campo semântico interpretativo incapaz de compreender cosmologias fora do esquema ocidental.
A Antropofagia opera para além do eixo interpretativo hegemonizado, embora faça parte do imaginário europeu desde as primeiras décadas do século 16. Hans Staden foi uma das primeiras pessoas a divulgar na Europa um texto relatando os rituais antropofágicos das etnias tupi da costa brasileira. Em um livro publicado em 1557, cuja versão brasileira chama-se Duas viagens ao Brasil (2019), Staden rememora suas aventuras como cativo dos Tupinambá da costa brasileira. É o próprio arcabuzeiro germânico que reforça em seus escritos a hipótese dialógica de Viveiros de Castro, explicando-a com o seguinte diálogo:
“A seguir, aquele que o matará volta a pegar sua maça e diz: ‘Sim, estou aqui, quero mata-lo porque a sua gente também matou e comeu muitos dos nossos’. O prisioneiro lhe responde: ‘Tenho muitos amigos que saberão me vingar quando eu morrer’” (STADEN, 2019, p. 164).
O recurso de devorar os inimigos e deles se servir era para os indígenas não um banquete exótico, mas uma cerimônia, um longo e metódico ritual. O sentido específico da devoração, em termos antropofágicos, pode ser explicado na sintética e brilhante definição de Raul Antelo:
“A antropofagia não devora corpos; ela produz corpos. Quem devora carne é o canibalismo” (ANTELO, 2001, p. 273).
Antropofagia Ritual
A Antropofagia ritual foi considerada, por ocasião do descobrimento, talvez o mais alto grau de deslocamento cultural entre os valores filosóficos europeus, que no conjunto da obra nem de longe poderiam ser considerados humanistas, e as cosmologias ameríndias. No velho mundo toleravam-se as fogueiras de pessoas desde os primeiros séculos, inclusive contra pessoas da própria Igreja Católica, como foi o caso de Lourenço de Huesca[1]. À medida que o catolicismo, em particular, foi ficando cada vez mais romano, a prática estendeu-se contra os que eram considerados hereges, como é o caso, por exemplo, de Giordano Bruno[2], que foi condenado a queimar vivo nas fogueiras da Inquisição, após defender a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico[3].
Como se pôde notar, os exemplos acima não tratam de rituais antropófagos propriamente ditos, mas servem como eventos arqueo-genealógicos similares, que colocam em causa o espanto dos europeus diante do ritual antropófago dos tupinambás, trazendo à tona o cinismo típico dos cronistas cristãos (católicos e protestantes). Michel de Montaigne, ainda no século 16, é o primeiro a dar-se conta disso quando escreve em Os canibais que
“Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entrega-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar um homem previamente executado.” (MONTAIGNE, 1978, p. 107)
Cumpre recuperar uma descrição antropológica do que era o ritual antropófago, conforme descreve Carlos Fausto, em seu artigo, Cinco séculos de carne de vaca: antropofagia literal e antropofagia literária (2011). Primeiro é preciso levar em conta que o cativo era escolhido entre os inimigos virtuosos, aprisionado durante meses e tratado com zelo, inclusive com direitos sexuais sobre a irmã, filha ou esposa do captor. Ele era, antes do ritual de execução, submetido a grandes cerimônias, exposto às aldeias vizinhas amigas como um cartão de visitas, engendrando um profundo e complexo sistema de sociabilidade que culminava no derradeiro ritual. A festa em questão podia durar dias. Antes da morte eles encenavam uma fuga em que o cativo era novamente capturado, bem como instado a declarar palavras de ordem vingativas contra seus captores. Mais do que isso, amarrado por uma corda, o cativo recebia
“pedras, frutos, cacos de cerâmica, que deveria lançar contra audiência mostrando sua ferocidade e coragem” (FAUSTO, 2011, p. 164).
Temos aqui, como podemos perceber na descrição, toda uma economia da performatividade que é engendrada durante o ritual sem a qual não há a possibilidade da realização da Antropofagia. É importante destacar, desde já, que a antropofagia, como recorda Viveiros de Castro (2002, p. 239), engendra um processo dialógico em que a vingança é o fator que a coloca em marcha. A alimentação que se fazia do corpo humano após o ritual antropofágico só era possível porque o ser comido era um sujeito de palavra (de discurso). Carlos Fausto recorda que na execução o matador do cativo era o único que era proibido de comer a carne daquele que seria assassinado, além disso estava sujeito a uma série de restrições sociais, tendo que ficar recluso e desposado de seus bens materiais.
O ritual antropofágico
A derradeira manhã chegava com o fim da cauinagem. Levado ao terreiro, pintado e decorado, preso por uma corda, o cativo esperava o carrasco que, portando um diadema rubro e o manto de penas de íbis vermelha, aproximava-se de sua presa, imitando uma ave de rapina. Das mãos de um velho matador, o algoz recebia a borduna. Tinha início, então, o célebre diálogo ritual com a vítima, imortalizado pelos cronistas.
Após o breve colóquio, em que cada parte reafirmava vinganças passadas e anunciava vinganças futuras, um golpe concreto e presente, desferido contra a nuca do cativo, rompia-lhe o crânio e lançava-o ao chão. As velhas acudiam com cabaças para recolher o sangue que se espalhava. Nada deveria ser perdido, tudo precisava ser consumido e todos deviam fazê-lo: as mães besuntavam seus seios de sangue, para que seus bebês também pudessem provar do inimigo. Se a comida era pouca e muitos os convivas, desfrutava-se o caldo de pés e mãos cozidas; se, ao contrário, o repasto era farto, os hóspedes levavam consigo partes moqueadas. (FAUSTO, 2011, p. 164, grifo nosso)
A descrição de Carlos Fausto é bastante ilustrativa e interessante referencialmente porque condensa de forma muito rica o que há de comum em muitos relatos de cronistas do século 16 com uma pitada de interpretação antropológica contemporânea, que tende, pela natureza da disciplina, a pensar os fenômenos a partir de perspectivas menos eurocêntricas.
Há na citação vários insights sobre a dimensão dialógica do ritual. Dentre eles podemos pontuar alguns aspectos: 1) “Portando um diadema rubro e o manto de penas de íbis vermelha, aproximava-se de sua presa, imitando uma ave de rapina”, trata-se claramente de um gesto performativo engendrado pelo ritual em perspectiva com o que é próprio de uma ave de rapina, matar, em um só golpe, a presa (há aqui a tomada de posição de uma alteridade, um ser humano se comportando como uma ave); 2) “Tinha início, então, o célebre diálogo ritual com a vítima”, entende-se que esse diálogo é fundamental para estabelecer as bases de uma Semiofagia, sem o qual ela não possível, uma vez que se trata de um processo de troca de perspectivas constantes; 3) “Após o breve colóquio, em que cada parte reafirmava vinganças passadas e anunciava vinganças futuras, um golpe concreto e presente, desferido contra a nuca do cativo”. Refere-se tanto ao momento em que a vítima é instada a atacar verbalmente e fisicamente jogando coisas contra seus captores e prometendo vingança de seus parentes contra aquela tribo que o capturou, quanto à ocasião em que o matador diz estar se vingando de seus antigos parentes que foram mortos pela tribo do capturado.
Estes, entre outros aspectos, devem ser notados para que se possa compreender nuances muito próprias da antropofagia, e que evidenciam formas de pensamento e de organização social.
Notas
[1] Um dos primeiros registros de piras humanas como prática “política”, por assim dizer, é o caso de Lourenço de Huesca, mais conhecido como São Lourenço, condenado pelo imperador romano Valeriano, no ano de 258 da era cristã, a ser colocado vivo sobre grelhas em chamas. A condenação deu-se porque, tendo morrido o Papa Sisto II, o imperador de Roma ordenou que o Diácono Lourenço entregasse suas riquezas ao império, o que fez com o que religioso reunisse centenas de cristãos pobres (vale ressaltar que os cristãos eram perseguidos nos primeiros séculos de nossa era, pelo menos até Constantino) e fosse até diante de Valeriano para declarar que aquelas almas, na verdade corpos, eram a riqueza da Igreja. A atitude enfureceu o imperador que ordenou sua morte na fogueira. Após ser condenado, ainda sobre as chamas, Lourenço de Huesca teria dito “Deste lado já está bom. Pode me virar!” (PIRLO, 1997, p. 178, tradução nossa). No original: “I’m well done on this side. Turn me over!” (PIRLO, 1997, p. 178).
[2] Sobre o pensamento e as ideias do autor, ler A ceia de cinzas (2012).
[3] Uma leitura introdutória à teoria, pode-se ler Copérnico e a revolução da astronomia (2003), de Fernanda Cury.
Créditos
Texto | Ricardo Machado
Imagem do topo | Reprodução Vímeo, vídeo Antropofagia Pinacoteca de São Paulo
Quer saber mais?
Bem, o texto acima é uma apanhado geral rigoroso, do ponto de vista da apuração e redação, mas ainda assim simplificado sobre a Antropofagia. Se você quer aprender mesmo sobre o assunto, não tem jeito, é preciso se aprofundar nas leituras.
Eis algumas referências que ajudaram a compor este texto.
Referências
ANTELO, Raul. Políticas Canibais: do antropofagismo ao antropoemético. In: Transgressão e Modernidade. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2001.
ANDRADE, Oswald de. Obras Completas VI – Do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifestos, teses de concurso e ensaios. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1978 – 2. ed.
BOPP, Raul. Vida e morte da antropofagia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
BRUNO, Giordano. A ceia de cinzas – Obras Italianas. Caxias do Sul: Educs, 2012.
CURY, Fernanda. Copérnico e a revolução da astronomia. Rio de Janeiro, Editora 4D, 2003.
FAUSTO, Carlos. Cinco séculos de carne de vaca: antropofagia literal e antropofagia literária. In: RUFINELLI, Jorge; ROCHA, João Cezar de Castro [orgs.]. Antropofagia hoje? Oswald de Andrade em cena. São Paulo, Civilização Brasilleira, 2011.
MACHADO, Ricardo de Jesus. Eu como outro. Ensaio de antropofagia filosófica, 2017, 79 f. Monografia (Especialização em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Unisinos, São Leopoldo, 2017.
MONTAIGNE, Michel de. Dos Canibais – Capítulo XXXI: Ensaios-I. In. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
PIRLO, Rev. Fr. Paolo O. “St. Lawrence”. My First Book of Saints. Parañaque (Philipinas): Sons of Holy Mary Immaculate, 1997.
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil: Primeiros registros sobre o Brasil. Porto Alegre: L&pm Pocket, 2019. 192 p. Tradução de: Angel Bojadsen.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
Como citar este artigo
MACHADO, Ricardo de Jesus. Antropofagia. 2020. Elaborada por Antropoafagias. Disponível em: https://antropofagias.com.br/antropofagia/. Acesso em: 13 abr. 2020.