Antinarciso
rico machado
Ao Eu que nunca fui, mas hei de ser
Talvez nem Freud tenha sido melhor em sintetizar a ideia de narcisismo quanto Caetano Veloso em Sampa (“É que Narciso acha feio o que não é espelho…”). O tema, aliás, é para a maior parte das pessoas um certo tabu, afinal ninguém gosta de ser “acusado” (esse é sempre o tom) de narcisista.
O fato é que, pelo bem pelo mal, a condição humana na Modernidade é marcada por um narcisismo incontornável, no qual somos algozes e vítimas (vejam o Antropoceno, está aí e não poupará ninguém). Anti-Narciso, assim, com hífen, é o título da primeira parte de Metafísicas canibais (2014), de Viveiros de Castro. A inspiração para pensar o tema vem daí.
Em termos psicanalíticos, porém, mais precisamente freudianos, o narcisismo é definido como “o complemento libidinal de autoconservação, do qual justificadamente atribuímos uma porção a cada ser vivo” (Freud, 2010, p. 15). Mais adiante ele complementa: “A libido retirada do mundo externo foi dirigida ao Eu, de modo a surgir uma conduta que podemos chamar de narcisismo” (Ibid, p. 16).
Pois bem. Estas duas citações não deixam muitas dúvidas (apesar do salto deste ensaio) sobre a correlação entre o narcisismo e o antropoceno. Caberia a um especialista do campo estabelecer as conexões amiúde de como um comportamento psicanalítico individual (o narcisismo) reproduzido na escala dos bilhões se traduz em uma era geológica. A tarefa continua, porém, em aberto (ao menos neste texto).
Feitas tais considerações introdutórias (e lá se vai a metade do texto), vamos à questão que me interessa com mais afinco: o Outro. Jacques Lacan, em um de seus Seminários (De um Outro ao outro, livro 16), dedica a primeira parte de seu livro para tratar precisamente do Outro. Também me furto a abordar as nuances desse debate (inclusive porque minhas conclusões merecem maior amadurecimento), mas gostaria de trazer meia dúzia de palavras sobre o Eu (o sujeito) e o Outro (alteridade).
Vejamos. Em linhas muito gerais, mas teoricamente precisa, a determinação conceitual de sujeito está no fato de “um significante o representar para outro significante” (Lacan, 2008 p. 48). Tal definição nos ajuda a situar, também, o caráter estruturalista do pensamento lacaniano.
De algum modo (e preciso refletir melhor sobre a afirmação a seguir), o Eu (o sujeito) está fora de si próprio, na medida em que é um significante para um significante. A noção multinaturalista de humanidade – humano é quem diz eu – nos ajuda a compreender esse paradoxo, pois a condição de humano, nesta perspectiva (vertente que sustenta a argumentação de fundo) é pronominal. A novidade aqui, se há, é uma possível ressonância entre a psicanálise (estruturalista) e o multinaturalismo (pós-estruturalista).
Lacan, ao abordar o Outro, nos reconduz às incertezas sobre nossa condição de sujeitos, ao afirmar que no “desejo do Outro, instala-se o próprio nó que formulei ao proferir que o desejo do homem é o desejo do Outro” (Ibid, p. 85). Oswald (1978) diria a esse respeito: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”.
Portanto uma saída antinarcísica para interrogarmos os problemas que criamos para nós mesmos e para os outros não diz respeito a quem é o outro e todas as consequências (cosmo)políticas que decorrem disso, mas quem somos nós? Mais ainda, tal como formula Viveiros de Castro, o que nos torna singulares, “o que ‘nos’ faz diferentes dos outros – outras espécies ou outras culturas, pouco importa quem são ‘eles’ quando o que importa somos ‘nós’ – já é uma resposta” (2015, p. 26).
O Antinarciso, enfim, é um gesto, uma tentativa, sempre falha, incompleta, de nos tornarmos estranhos a nós mesmos e disso depreender novas perguntas para problemas nem tão novos assim.
Referências
ANDRADE, Oswald de. Obras Completas VI – Do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias. Manifestos, teses de concurso e ensaios. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1978.
FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LACAN, Jacques. O seminário livro 16: de um outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
Como citar este artigo
MACHADO, Rico. Antinarciso. 3. ago. 2023. Disponível em: https://antropofagias.com.br/2023/08/03/antinarciso. Acesso em: 3-8-2023.