Uma foto que nos mortifica
rico machado
À Catarina, pela oportunidade de me dar a mão todos os dias.
Quando Roland Barthes olhava uma fotografia tinha um interesse particular: o sentimento que a imagem despertava. Aquilo que lhe parecia interessante investir não era, sob nenhum aspecto, qualquer caráter artístico do fazer fotográfico, o que, pare ele, era um desvio estético, quando o mais importante era a dimensão política inerente a certas fotos.
Esse “sentimento” em relação à fotografia tinha algumas nuances. De início havia, em suas palavras, “um afeto médio”, para o qual, dizia ele, não existia palavra em francês (seu idioma) que o designasse, razão pela qual ele chamou tal sentimento de Studium. O studium não é, nesta perspectiva, propriamente um estudo, mas “uma espécie de investimento geral, (…) mas sem acuidade particular”. Em suma, o studium é uma vontade genérica sobre algo.
Havia um segundo elemento que rompia e tensionava essa sensação inicial ao ver uma fotografia. Tratava-se de algo, sendo parte da cena, que o atingia como um material perfurante, que o atravessava à revelia de seu desejo. A esse aspecto ele deu o nome de punctum. “Pois o punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”. É essa singularidade, o punctum, que torna a fotografia subversiva, porque a torna pensativa.
Recentemente fomos engolidos pela iconofagia das imagens do terremoto que devastou a Turquia e a Síria no começo de fevereiro de 2023. Se a maior parte das fotos nos desperta o interesse geral (studium) sobre um “evento” desta magnitude, há uma foto que se distingue de todas as demais. Trata-se da imagem de Mesut Hançer e Irmak, registrada pelo fotógrafo Adem Altan (não reproduzo a imagem devido aos direitos autorais).
No quadro, Mesut Hançer está sentado sobre parte dos escombros. Bem ao centro da imagem, rodeado pela devastação do terremoto, o homem tem a mão esquerda estendida sobre um colchão. Quando observamos com um pouco mais de atenção percebemos que a mão do homem segura outra mão, mas pequena (esse é o punctum). O resto do corpo não se vê, está sob as ruínas. Essa inerte mão é de Irmak, sua filha de quinze anos. Tudo ganha ares ainda mais dramáticos quando se descobre o contexto da foto. “Venha, fotografe a minha criança”, disse o pai diante do fotógrafo, segurando a mão morta de sua filha.
Há dias convivo com essa imagem na cabeça. Perseguido, mortificado pelo instante eternizado e midiatizado. Mais do que isso, é esse punctum, esse detalhe, objeto parcial, que me devasta. Às vezes, quando abraço e seguro a mão de minha filha, sinto-me sugado pela lembrança desta imagem viva da morte. A força metonímica desta fotografia me arrasta aos escombros turcos e me torno um pouco Mesut Hançer de mãos dadas com a filha. Esse ponto pungente, a mão dada – expressão transcendente de qualquer relação profunda de amor – é, como diria Barthes, o “’detalhe’, [que] preenche toda a fotografia”.
Voltei à A câmara clara de Barthes 17 anos depois da primeira leitura. Há uma vida nesse intervalo de tempo. A retomada do livro, no entanto, tinha um absoluto ar de novidade, em que tudo parecia inédito. Na introdução, escrita por Muniz Sodré, há a informação, desconhecida por mim, de que a morte do teórico francês teve relação com um atropelamento em frente ao Collège de France. O óbito ocorreria um mês depois, segundo os laudos médicos, por complicações pulmonares. Ainda que em contextos sociais, políticos e existenciais completamente diferentes entre si, o falecimento de Irmak e Barthes mexeram comigo.
Desta vez, tive como companheira de leitura a morte, não como uma ameaça iminente – embora sempre à espreita –, mas como uma fiel revisora da interpretação de cada parágrafo, como a me lembrar que a vida é um sopro. Talvez por isso a imagem de Mesut Hançer e Irmak me vinha à mente a todo instante. A tragédia do pai turco é tragédia de todos pais. Todos nós morremos um pouco, quando a morte de milhares de pessoas é simbolizada tão brutalmente por uma foto cuja força reside no detalhe das mãos dadas. Tal como sugere Barthes no último parágrafo do livro, uma das formas de encarar a fotografia (e pra mim a única possível) é “o despertar da intratável realidade”.
Bibliografia
BARTHES, ROLAND. A câmara clara. Nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2022.