Solitário, HQ de Christoph Chabouté
rico machado
O ser humano é um universo. Desde criança, apesar de ter muitos amigos e interagir bastante com eles, sempre valorizei os momentos de solidão. Naquela época isso tinha a ver com a rotina de uma família composta por dois filhos e uma mãe solteira, que saía às 5 horas da manhã para trabalhar e voltava à noite. Mas retornava, ainda que exausta, feliz pelo reencontro com os filhos (o que, acredite, não era algo óbvio). Lembro, nos momentos solitários, de ter minha imaginação como melhor amiga.
Corta para três décadas depois. Estou no sofá de um apartamento habitado apenas por mim mesmo. Decido ler um livro emprestado por Bruno, jovem estudante de Artes Visuais. Trata-se de uma HQ de Chistophe Chabouté, chamada Solitário. Bruno, tal como eu, vive sozinho em um apartamento em frente ao prédio onde moro. Tudo isso numa cidade do interior do oeste baiano, que é uma versão semiárida, em maior escala, do imóvel navio de granito – o farol – onde vive Solitário, personagem principal do livro.
Há uma segunda pessoa responsável pela descoberta dessa HQ. Tal qual uma personagem do quadrinho que por um golpe do destino fica algumas horas no minúsculo píer do farol onde vive Solitário e deixa uma revista mais tarde encontrada pelo morador, Manan, professora de Bruno, indica esta obra que impacta por um paradoxo de visualidade: as imagens do mundo construídas pelo protagonista advêm da própria ausência de imagens sobre o mundo.
Não sou propriamente um especialista nem um leitor voraz de HQs, mas conheço alguma coisa. Em que pese minha falta de repertório mais amplo, caberia algumas considerações. A riqueza do quadrinho de Chabouté tem dois grandes trunfos. Vejamos.
Em primeiro lugar é seu traço, em preto e branco, muito cinematográfico. Tem uma estética bastante Cinema Noir, que deve, presumo, ser uma referência desse autor nascido no final dos anos 1960, na França. Além disso (ou em razão dessa característica), é roteirista. Portanto, seu quadrinho é prenhe de uma audiovisualidade que transcende e prescinde o cinema, tal como intuiu Einsestein há mais ou menos um século.
O outro ponto é seu enredo. Devido ao formato quadrinho, é preenchido por silêncios avassaladores, capazes de nos arrebatar de tristeza e ternura. Em particular nesta trama, de um ponto de vista bem pessoal, há algo que me encanta, a saber: a forma como Solitário produz significado imagético sobre as palavras que encontra aleatoriamente num velho dicionário. Essa dinâmica tem a ver com meu interesse pelo campo semiótico, precisamente o fato de que o sentido do mundo não está dado e depende da relação que estabelecemos com o que há – os fenômenos –, de tal maneira que tudo o que existe poderia ser de outra forma, talvez mais humana, inclusiva e gentil.
A obra narra a história de um homem filho de um faroleiro e sua esposa, que viviam isolados em alto mar, e que jamais teve contato com o resto do mundo. Antes de morrer, o pai de Solitário entregou suas economias a um rabugento, mas fiel marinheiro que semanalmente deixa provisões no minúsculo píer do farol, sem jamais estabelecer contato. Isso muda quando o dono do barco contrata um calado ajudante que, nas poucas vezes que fala, começa a fazer perguntas que o comandante da embarcação considera inoportunas. Contudo, os desdobramentos na história não são nada óbvios. Em vários momentos o autor nos puxa o tapete da expectativa e leva o enredo por um caminho inesperado, mas sempre capaz de nos colocar diante das grandes encruzilhadas da experiência humana. Essa estratégia se repete ao final do livro, que longe da banalidade insuspeita de uma leitura ligeira, nos coloca diante do abismo que significa viver a vida.
Solitário é um livro comovente. Nos provoca a pensar sobre o sentido em sua dimensão mais profunda. Isto é, nos leva a pensar não somente sobre o que sentimos, mas como formulamos o sentido (significado) daquilo que sentimos. Traz uma doçura que nos causa mal estar, pois nos joga nus diante de nós mesmos, com nossas cicatrizes e memórias. Faz, ao mesmo tempo, um convite a deslocarmos nosso centro de gravidade do próprio umbigo em direção ao mundo e à vida, que, apesar dos incontáveis riscos, é e sempre poderá ser de outra forma.
Christophe Chabouté
Christophe Chabouté nasceu em 1967 e é de origem alsaciana. Frequentou os cursos de Belas Artes em Angoulême e Estrasburgo. A editora Vents d’Ouest publicou suas primeiras obras em 1993 em Les Récits, um álbum coletivo sobre Arthur Rimbaud. Seu trabalho Tout seul, considerado sua obra-prima, foi traduzido para o português com o título “Solitário” e lançado no Brasil pela editora Pipoca e Nanquim em 2019.