É isto um homem? | #001
A vida é uma causa perdida é uma série de textos que têm como tema as coisas inúteis da vida, que não por acaso tendem a ser, justamente, suas belezas
Rico Machado
O Diário de Anne Frank é, além de um livro muito sensível sobre o drama dos perseguidos políticos pelo Terceiro Reich, possivelmente a obra mais popularmente conhecida que traz relatos sobre as vítimas do holocausto nazista. Outro livro, porém, é tão ou mais sensível que a tocante narrativa da jovem judia de origem alemã morta no campo de Bergen-Belsen na Alemanha em 1945, trata-se de É isto um homem? do autor italiano e sobrevivente do holocausto Primo Levi.
Em um trecho do último relato publicado no livro, datado como dezembro de 1945 – janeiro de 1947, Levi escreve assim..
É um homem quem mata, é um homem quem comete ou suporta injustiças, não é um homem que, perdida já toda reserva, compartilha a cama com um cadáver. Quem esperou que seu vizinho acabasse de morrer para tirar-lhe um pedaço de pão, está mais longe (embora sem culpa) do modelo do homem pensante do que o pigmeu mais primitivo ou o sádico mais atroz.
Uma parte de nossa existência está nas almas de quem se aproxima de nós; por isso, não é humana a experiência de quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa antes os olhos de outro homem. (PRIMO LEVI, p. 253)
O testemunho de Levi nos toca de forma particularmente direta e profunda nesta altura da pandemia que vivemos. Segundo a última apuração são 107.232 joões, marias, pedros, renatas, franciscos, julianas, pablos, carolinas, eduardos, marcelas, rodrigos, leticias, rafaéis, cristinas, todos eles mortos de uma maneira atroz.
É isto um homem não é capaz de oferecer nenhuma solução à crise sanitária, ecológica e econômica que vivemos. É tão eficaz para pensar soluções aos nossos dilemas, quanto os algoritmos foram eficientes para prever a profundidade da pandemia que vivemos. O sentido profundo dessa mais de centena de milhares de pessoas mortas pela covid-19 somente no Brasil é a total ausência de sentido. Resgatar a dimensão humana daquilo que aparece como “puro” levantamento de dados é uma forma de trazer nossa humanidade à tona, tornarmo-nos pessoas humanas novamente e, ao menos para isso, o livro de Primo Levi tem enorme serventia. Sejamos capazes de ver pessoas, pessoas não dados, acima de tudo pessoas nesta macabra contagem que nos compete atualizar diariamente.