Saci! O trickster contra a síndrome do impostor e o pensamento colonizado
Rico Machado
Imagens: arquivo do entrevistado e frame do documentário Raizes
Saciólogo. Lido assim, rapidamente, talvez você nem perceba a troca da vogal. Ou se leu com atenção, pode pensar que há um erro de digitação, mas não, é exatamente isso: Saciólogo. Muitos poderiam ser os predicados para descrever o Andriolli Costa – professor, escritor, cineasta (ou realizador audiovisual para os mais ortodoxos), contador de histórias etc – , mas nenhum é mais fiel que aquele que denomina os observadores de sacis. “Quem estuda saci tem especial apreço não só pela cultura, pelo imaginário ou pela tradição, mas também pela desordem, pela impostura, pela provocação. O preço a pagar é a desconfiança do outro; o que se ganha é a oportunidade do maravilhamento”, conta Andriolli, em entrevista por e-mail ao Antropofagias.
Pesquisador de temas relacionados ao folclore brasileiro, Andriolli sempre atuou numa dialética entre os códigos e normas do mundo urbano e as linguagens e saberes do Brasil do sertão. “Reconhecer, portanto, o valor epistemológico e ontológico destes saberes é entrar em diálogo com muito da proposta de descolonizar os pensamentos”, sustenta o entrevistado. “Uma reflexão que me tomou durante a vida acadêmica foi justamente a da inversão da lógica da Síndrome do Impostor – aquela na qual cada conquista ou fracasso gera no indivíduo a nítida sensação de ser uma fraude. Assim, se a pessoa é aprovada em um congresso, é porque fingiu tão bem que iludiu seus avaliadores; se terminou a tese é porque disfarçou sua ignorância latente”, complementa.
Nesta semana, dia 4, ele lança e exibe seu documentário Raízes – Um filme sobre colecionar sacis, com exibição única no YouTube, às 20 horas. A obra faz memória de seu avô, Seu Oliveira, e presta homenagem à sua avó, Dona Marlene. “Falar de saci é falar de raízes, e ali estou mostrando as minhas, num documentário que entrecruza depoimentos sobre o saci e minhas próprias reflexões sobre o que ele significa. O vô me ensinou a ouvir para além do que havia para escutar. De estar para o outro; de reconhecer o que ele me oferece, ao invés de exigir o que eu espero”, ensina.
Andriolli Costa é jornalista, narrador e pesquisador de folclore e imaginário brasileiro. Sócio-fundador da Rede de Estudos e Pesquisas em Folkcomunicação e membro da Comissão Sul-Mato-Grossense de Folclore. É mestre em Jornalismo pela universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Seu Podcast Poranduba volta-se aos temas de suas pesquisas, bem como o seu site, o Colecionador de Sacis.
Leia a entrevista.
a} – O que é e o que faz um saciólogo?
Andriolli Costa – Tenho a alegria de ostentar, desde 2008, a carteirinha de sócio número 918 da Sociedade dos Observadores de Sacis. O documento me dá o direito de observar sacis em qualquer hora e lugar, de preferência acompanhado, e sem que por isso possa ser incomodado. A blague criada pelos companheiros da SoSaci, uma ONG que existe desde 2003, diz muito mais do que aparenta. Em um mundo em que até mesmo nosso tempo livre é mercantilizado, e a mera impressão de ócio nos carrega da culpa da improdutividade, reconhecer em mim o direito de parar durante uma rotina extenuante e contemplar a agência deste pequeno encantado é mais que libertador.
Saciólogo, a denominação daqueles que estudam o saci, é também outra brincadeira proposta pela SoSaci. É especialmente divertido ver a consternação daqueles que veem seus sócios-fundadores, intelectuais de uma esquerda operária e combativa nos anos de chumbo, assumirem para si esse título antes de qualquer outro honorífico. Quem estuda saci tem especial apreço não só pela cultura, pelo imaginário ou pela tradição, mas também pela desordem, pela impostura, pela provocação. O preço a pagar é a desconfiança do outro; o que se ganha é a oportunidade do maravilhamento.
a} – Como o folclore, no nosso caso, o brasileiro, é antes de tudo um gesto de descolonização do pensamento?
Andriolli Costa – Antes de tudo é importante ponderar sobre algumas questões valiosas. O termo folclore, surgido de um neologismo britânico no século XIX, emerge em um contexto burguês de salvaguarda de curiosidades populares que tenderiam a desaparecer ante o avançar da industrialização. Desta época, temos uma ideia de folclore ligada ao que é feito por este outro no qual eu não me reconheço; o “campesino indefeso” diante da máquina. As primeiras décadas do seu surgimento, lastro de um imaginário romântico, se preocuparia mais com coleta de narrativas e objetos pitorescos do que com uma efetiva reflexão de alteridade e identidade diante deles. E mesmo que isso tenha ficado para trás dentro dos estudos folclóricos, é especialmente assim que ecoam as visões sobre o trabalho de folcloristas em outras áreas, fazendo com que muitos considerem o termo uma redução colonialista dos saberes alheios à intelectualidade eurocêntrica.
Hoje, especialmente após a segunda metade do século XX, e com inegável influência gramsciniana, folclore passa a ser visto de maneira diferente. Torna-se o conjunto de saberes, modos de sentir, pensar e agir do povo, sendo este povo o conjunto de classes subalternas de determinado local. Luiz Beltrão ia ainda mais além para propor o folclore como justamente o Jornalismo destas classes subalternas, uma vez que era a partir da mediação de um líder de opinião (um mestre de saberes populares) que a comunidade se informava.
E por que essa insistência no caráter subalterno do folclore? Por que as classes dominantes, possuem seus próprios modos de produzir e comunicar, de sentir, pensar e agir. Excluídos destes processos, os que partilham destes saberes não-hegemônicos se consolidam a partir de modos de estar no mundo que sempre passam ao largo das instituições. Por isso vamos encontrar práticas tradicionais que se mantêm – e insistem em se manter – independente do que legisla o Governo, a Igreja, a Ciência… Folclore existe e persiste apesar das instituições, não graças a elas. Por isso, insistimos: folclore é resistência.
Dito isto, cabe um último aparte: há uma tendência em pensar o folclore, uma vez que é calcado na tradição, como fundamentalmente reacionário. E se encontramos efetivamente a persistência de elementos misóginos, racistas, também compreendemos que existe uma dinâmica na manutenção destes saberes. Mutante e mutável, há fatos folclóricos que morrem e outros que ressurgem diante de dinâmicas sociais orientadas pelo próprio povo e que muitas vezes existem em resposta ao status quo – este, sim, carregado e valorado por estereótipos conservadores.
Reconhecer, portanto, o valor epistemológico e ontológico destes saberes – o nosso desafio contemporâneo – é entrar em diálogo com muito da proposta de descolonizar os pensamentos. E se é verdade que o fazemos por vezes munidos de conceitos estrangeiros (o Mythos dos gregos, o folklore dos ingleses), também é verdade que deles nos apropriamos para fazer leituras próprias que dizem respeito a ninguém além de nós.
a} – Bem, você é também doutor em comunicação e professor universitário. De que ordem são os desafios de lidar academicamente com temas tão próximos à cultura popular? O que há de fascinante e, ao mesmo tempo, de frustrante em lidar nesta relação?
Andriolli Costa – O desafio evidente é que, ao fugir da norma, a conquista dos espaços é paulatina e menos efervescente do que o estudo dos temas do momento que caíram nos louros da academia. E exige mais do que trabalho, relacionamento, reflexão; exige estratégia. Uma reflexão que me tomou durante a vida acadêmica foi justamente a da inversão da lógica da Síndrome do Impostor – aquela na qual cada conquista ou fracasso gera no indivíduo a nítida sensação de ser uma fraude. Assim, se a pessoa é aprovada em um congresso, é porque fingiu tão bem que iludiu seus avaliadores; se terminou a tese é porque disfarçou sua ignorância latente.
Assumindo o engodo do trickster, este arquétipo que orienta os pregadores de peça – entre eles o saci – passei a ver o logro como norma. Somos todos insuficientes, a disputa é justamente para ver quem mascara melhor suas limitações. Assim, conquisto espaços fundado nos arcabouços ancestrais, mas discutindo o contemporâneo. É o que eu quero falar, disfarçado com o que o meu interlocutor quer ouvir. E assim a comunicação se forma.
a} – Como superar a fratura entre a sabedoria popular e o conhecimento acadêmico sem produzir hierarquizações e estabelecendo formas de contato produtivo para ambos lados?
Andriolli Costa – Escrevi em 2016 um texto refletindo sobre o que chamei de Extrativismo de histórias. Tal como a biopirataria, onde plantas utilizadas em práticas tradicionais de cura são expropriadas, patenteadas e exploradas à revelia das comunidades de origem, há uma tendência muito grande da academia (quando não relega os estudos do povo ao grau da desimportância) beber de narrativas folclóricas compartilhadas por mestres de saberes, festeiros e fiéis de cultos populares e depois simplesmente abandonar as comunidades à própria sorte. A relação dura até o fim da bolsa da pesquisa.
O que podemos aprender no campo científico da relação do povo com o folclore é algo que justamente falta à academia: os afetos. Nos saberes tradicionais, a repetição é fundamental. No entanto, não repetimos por condicionamento programado. Não repetimos porque somos robôs, designados para isso. Repetimos porque assim aprendemos com aqueles que nos eram queridos, e encontramos nesse retorno a um passado ancestral uma afetividade que conecta, que integra. O indivíduo, pérola da modernidade, se ressente da ideia de uma coletividade imprecisa do folclore. Pois isso é também uma lição: somos muitos, somos plurais, mas nos reconhecemos uns nos outros – em modos de sentir, pensar e agir. E isso é muito.
Dito isso, há de se pensar sempre na importância da contrapartida. E ela não precisa ser financeira e muito menos imposta de cima para baixo. O que você pode agregar à comunidade? Como colaborar para mantê-la viva? São descobertas muito peculiares que surgem apenas do encontro.
a} – Dia 4 de junho estreia o seu documentário Raízes – Um filme sobre colecionar sacis. Do que trata o filme? Como ele foi construído, pensado e realizado?
Andriolli Costa – Em 2015 eu criei meu site, o Colecionador de Sacis, e passei a socializar o conhecimento de pesquisa sobre o tema sobre o qual eu estudava desde 2008, quando comecei na iniciação científica. Logo de início, muita gente me perguntava a questão evidente: por que saci? Há várias respostas possíveis para isso, entrecruzando os elementos simbólicos desse mito que carrega um pouco da trindade formadora da cultura brasileira (português, indígena e negro); que desde o final do século XIX se consolida no imaginário de uma sociedade fundamentalmente racista que o demoniza, mas ainda se fascina com ele. Eram boas respostas, mas faltava algo mais. Por que saci? Eu também precisava saber. Por isso, naquele ano mesmo, fui com minha namorada para a chácara dos meus avós em Terenos/MS munido de tripé, rebatedor e uma velha câmera e gravei com a família entrevistas sobre a presença do saci em suas vidas.
Esse material se viu perdido em um computador antigo cujo HD foi queimado e depois recuperado. Durante o período de isolamento social, vendo a proximidade do aniversário de minha avó – que passaria sozinha – e às vistas com o aniversário de um ano de morte do meu avô, me vi mergulhado nas imagens recém-encontradas como um tesouro. A clareza dos motivos que me levaram a filmar veio só com este olhar distanciado, e percebi que precisava compartilhar essa história. Falar de saci é falar de raízes, e ali estou mostrando as minhas, num documentário que entrecruza depoimentos sobre o saci e minhas próprias reflexões sobre o que ele significa.
a} – Qual foi a importância do seus avós na sua formação, não somente como pesquisador e jornalista, mas, sobretudo, na sua construção humanista?
Andriolli Costa – Meu avô, Seu Oliveira, e minha avó, Dona Marlene, sempre foram grandes contadores de história, mas cada um do seu jeito. O fascínio de ouvi-los sempre me acompanhou onde quer que eu fosse. Com o tempo, percebi um triste distanciamento da família daquele momento de escuta, e isso era claro especialmente no caso do velho. Desde que me conheço por gente, o vô sempre foi surdo. Como não ouvia, falava. E passou a ser comum, durante a juventude, ver os agregados da família o ignorando ou efetivamente o silenciando. Isso quando não debochavam de alguma das suas mezinhas ou simpatias. Parecia haver uma noção evidente de que a idade e a educação formal impunham um caminho que não apenas levava para longe deles, como também desprezava toda a caminhada por eles já percorrida.
Isso me deixou muito desgostoso, e me incentivou a fazer o contrário. Era eu quem procurava o vô e a vó, eu que sentava ao lado e puxava uma história para me permitir a escuta. Isso foi fundamental para entender muita coisa: o vô falava coisas, mas fazia outras. Cearense natural de Iguatu, dizia que não tinha saudade alguma do Nordeste, mas quando o assunto surgia deixava afogar os olhos azuis feito um açude. Não falava de saudade, mas cantava com uma melancolia tamanha que assim dizia tudo o que precisava ser dito. O vô me ensinou a ouvir para além do que havia para escutar. De estar para o outro; de reconhecer o que ele me oferece, ao invés de exigir o que eu espero.
Ele me ensinou também que azeite doce é o maior remédio de todos, não por alguma propriedade específica, mas por que veio da sua terra. É por isso que quando eu me sinto perdido, retornando para a minha terra que me encontro. E foi em um desses retornos, quando descobrimos seu câncer no intestino, em 2014, que tudo isso que estava inato passou a despertar em mim. Atravessado pelo que aprendi, me tornei um só em tudo o que eu faço: como acadêmico, professor, jornalista, contador de histórias, neto, filho ou homem.
a} – Como o Brasil profundo, do sertão (que como dizia Guimarães Rosa) está em toda parte, foi importante na sua formação humana?
Andriolli Costa – Qualquer um pode tentar observar sacis, mas para conseguir enxergar é preciso treinar as vistas. O olhar do Brasil profundo já faz parte de mim. Com os olhos mediados pela técnica o homem da modernidade olha para as árvores da floresta e vê cadeiras em potencial. Eu vejo os gomos do taquaruçu e vejo ali a potência mítica sendo gestada. Os ventos revoltos da transformação que começa pelo encanto.
Eu sou deste entrelugar ignorado que é o centro-oeste, num estado – o Mato Grosso do Sul – que se encontra entre cinco outros estados e dois países. A fronteira é meu lugar. E se sabemos que as fronteiras são fundamentadas pelo influxo de trocas, de idas e vindas, é neste espaço que me encontro. Estou sempre no entroncamento: pesquisa e vivência, reflexão e afeto, ciência e folclore, jornalismo e ficção. Nunca uma coisa ou outra, sempre uma coisa e outra, e não saberia fazer diferente. Meu chão me segura enquanto persigo o céu.
Raízes – Um filme sobre colecionador de sacis
Raízes – Um filme sobre colecionador de sacis
Estreia, 4 de junho de 2020, às 20 horas
No Youtube, Canal Colecionador de Sacis
Direção e roteiro: Andriolli Costa
Filmagem e assistência: Andriolli Costa e Jéssika Andras
Assita o trailler
Outras produções audiovisuais
Andriolli Costa já dirigiu os curtas Enterros (2015), O Colecionador de Sacis (2016) e Medusa (2017), todos relacionados a mitos e lendas. Este é seu primeiro projeto em documentário.